quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Cães não são amigos(as) de cães


O anão
"Não interessa dizer como foi que um bancário como eu conheceu uma mulher como Paula, mas eu vou contar. Ela me atropelou com o carrão dela e me levou para o Miguel Couto e disse no caminho, a culpa foi minha eu estava falando no telefone celular e me distrai, meu marido odeia que eu dirija. Chegando no hospital eu falei para todo mundo que a culpa era minha. Ela deu um suspiro de alívio e falou baixinho, muito obrigada. Eles operaram minha perna, enfiaram um monte de parafusos nela e me deixaram numa maca no corredor pois o hospital estava cheio e não tinha vaga nas enfermarias.
No dia seguinte de manhã ela veio me visitar. Perguntou se eu tinha passado a noite no corredor, aquilo era um absurdo, disse que ia me levar para uma casa de saúde particular. Expliquei que estava bem, ela não precisava se preocupar. Eu queria que ela fosse embora, eles me haviam vestido com uma camisola que se eu me virasse na cama digo maca a minha bunda ficava de fora. Ela deixou uma caixa de bombons que eu dei para a moça que cuidava de mim, Sabrina, acho que era servente mas gostava de fingir que era enfermeira.
Uns dias depois a mulher voltou com outra caixa de bombons.Nem chegou a dizer nada pois Sabrina apareceu e perguntou, como foi que a senhora entrou aqui e ela disse que tinha licença do diretor e que se sentia responsável por mim pois tinha me atropelado, que eu ia ter que usar muletas e que ela ia trazer muletas para mim. Não precisa, disse Sabrina, ele já tem e por favor a senhora se retire pois está na hora do exame. A mulher perguntou se eu queria que ela fosse embora e eu disse que queria e ela foi embora e Sabrina pegou na minha perna e sempre que Sabrina pegava na minha perna eu ficava de pau duro, agora que a perna doia menos. A caixa de bombons dessa ociosa fútil voce joga no lixo, tá?
Nesse dia mesmo de tarde Sabrina apareceu e disse que eu era um sujeito de sorte ou então era amigo do prefeito pois ia ser transferido para uma enfermaria. Quando Sabrina aparecia meu coração batia apressado e cada dia eu achava ela mais atraente e ficava de pau duro quando ela tocava em mim, mas toda noite eu sonhava com a mulher que havia me atropelado, os cabelos negros compridos finos, o corpo branco como uma folha de papel. E nesse dia mesmo Sabrina me deu um recorte de jornal com o retrato da mulher, olha aqui a sua dondoca assassina. Foi aí que eu soube que o nome dela é Paula. É claro seu idiota que voce não sabia o nome, ela não ia te dar o nome com medo de voce pedir uma indenização, as coisas que os ricos mais gostam é dinheiro, ela então te dá chocolatinhos que custam uma merreca para voce não fazer nada contra ela, rasga logo essa foto.
Escondi a foto e continuei sonhando com Paula e ficando de pau duro sempre que Sabrina pegava na minha perna e olhando a foto de Paula quando Sabrina não estava por perto. Quando tive alta Sabrina me perguntou se eu queria que ela me levasse para casa e eu disse que não era preciso eu ia sozinho. Ela insistiu e eu fui duro, não precisa, e ela ficou chateada e eu disse que não era preciso eu ia sozinho, Sabrina tinha cuidado de mim, tinha me ensinado a andar de muletas e eu tratando ela daquele jeito.
(...)"
Na cabeça dos cães, o humano é seu melhor amigo, quando à sua presença, balança o rabo de alegria e só morde se o Outro tenta roubar-lhe seu direito à sobrevivência. E se os cães falassem ou escrevessem, normal ou em Braille, ou se soubessem colocar nomes e números em gestos ou sensações, não se enganariam tão bem e não se preocupariam com autenticidades para garantir seu bem estar imediato. Cachorros e cachorras, não se sentem inferior, muito pelo contrário, nem fazem comparações.
"(...)
Não foi porque Sabrina tinha os cabelos oxigenados que eu comecei a gostar menos dela, quer dizer, eu gostava de foder com ela, nós bancários somos muito tesudos, vivemos de pau duro, deve ser por pegarmos em dinheiro o dia inteiro, pelo menos era isso que acontecia comigo, toda mulher que aparecia no guichê dava vontade de foder com ela, quer dizer, as bonitas, mas não precisava ser muito bonita às vezes até as feias eu queria comer, ficava perturbado e errava o troco e no fim do mês era descontado, o banco não perdoava e tantas fiz que eles me mandaram embora e até foi bom pois achei que não pegando tanto em dinhero aquele tesão maluco ia passar e eu poderia viver em paz. Mas fui atropelado logo no dia seguinte em que fui demitido e começaram a acontecer essas coisas todas, Sabrina, Paula, o anão.
(...)"
Os cães não deixaram de ser selvagem, como qualquer outro animal. Sua semelhança aos vegetais, dóceis e inertes, é uma estratégia de caça.
"(...)
Não dá para viver com uma mulher assim. Sempre que nós fodíamos, nas vezes em que fodíamos o dia inteiro e eu dava duas ou três de pau dentro, não estou contando vantagens foi o maldito tempo que passei contando dinheiro no banco, nessas ocasiões, quando acabávamos de foder, Sabrina perguntava, com as outras foi assim? essa loucura? E eu que não sou bobo nem nada dizia, não não, só com voce. Jura que é só comigo? juro, quero ver minha mãe morta se algum dia eu fodi assim com outra mulher. Sua mãe já morreu, seu filha-da-puta. Juro que quero ver minha mãe viva, se não for verdade que eu só fodo assim com voce. Isso era pra rir, nós devíamos dar umas gargalhadas, é bom rir entre uma trepada e outra, mas Sabrina não ria nunca, ela só gostava de foder. Se ela tivesse pegado em tanto dinheiro novo e velho durante tanto tempo eu nem sei o que tinha acontecido com ela. Sabrina era renitente, voce lembra o nome todo dela seu infeliz, anda, confessa, um dia desses vou procurar essa Paula e liquidar este assunto. Mais juramentos meus, mais socos na perna de pinos.
(...)"
Os cães, para mim, só servem para sujar e se alimentar. E o pior, se for cadela, ainda se multiplicam. Quando oferecem segurança, são como as muletas; eu não gosto de muletas, cadeiras de roda e mulher carpideira.
"(...)
Quero voltar, eu disse, não vou deixar ela morta lá. Paula concordou, está bem talvez assim seja melhor. O carro parou na esquina, amanhã venho te ver de tarde, me espera, e Paula foi embora. Havia uma aglomeração na porta, curiosos, um polícia que informou que o rabecão já vinha. Dona Alzira me recebeu com uma saraivada de palavras, ah voce chegou sua amiga caiu da escada, eu estava vendo televisão quando ouvi o barulho e corri quer dizer primeiro vesti meu penhoar com esse calor ninguem fica todo vestido dentro de casa e a porta da rua estava aberta e a moça estava caida e eu logo vi que estava morta, eu sei quando uma pessoa está morta, já vi muita gente morta na minha vida não sou criança, minha irmã morta ficou com a cara igual à dessa moça e o homem da polícia quer falar com voce. O policial disse apenas que eu teria que ir à delegacia para prestar depoimento. Os curiosos foram embora, dona Alzira foi ver a novela e ficamos apenas eu e o polícia e a pobre Sabrina cujo cabelo parecia ainda mais oxigenado, esperando a perícia e o rabecão.
(...)"

Mulheres e cadelas quase se igualam, aquelas fazem diferença porque possuem - quando possuem - memória e usam do poder das palavras/nomes. Vez ou outra pecam por conhecer muito o conhecimento e afirmam que não são crianças por isso.
"(...)
Todo sábado eu me encontrava com o anão e pagava o almoço para ele com o dinheiro da minha indenização trabalhista e o anão ouvia grunhindo eu contar que estava muito apaixonado, que Paula era a mulher mais bonita do mundo, que um dia eu tinha dado nove gozando em todas e ela também, e que ela ia para casa com as pernas doendo. As mulheres tem pernas fortes, disse o anão, mas acho que ele não acreditou no que eu disse. Nesse sábado eu aluguei o anão o dia interio e de noite fomos jantar e tomamos um porre e eu levei o anão até onde ele morava, não muito longe da minha casa, num barraco pro lados da cidade nova perto do Piranhão, que´é a sede da prefeitura, assim chamada porque ali tinha sido o bairro das putas. Quando acordei os retratos de Paula tinham sumido, o do jornal e o da polaróide e eu fiquei desesperado e fui ao lugar onde tínhamos tomado o porre, mas ninguém tinha achado as fotos e fui ao barraco do anão e ele não estava e passei o resto do domingo desesperado a noite inteira acordado dando cabeçadas na parede.
(...)"
Homens e cães quase se igualam, aqueles fazem diferença porque possuem - quando possuem - memória e a usam no poder da natureza. Vez ou outra pecam por usar sua animalidade e afirmam que não são cachorros por isso.
"(...)
Na segunda Paula chegou e não tirou a peruca nem os óculos escuros nem a largou nem deu um beijo e disse um sujeito chamado Haroldo telefonou hoje de manhã para minha casa alegando que era seu amigo e que tinha uma foto minha nua e que queria dinheiro para devolver a foto, voce guardou uma daquelas fotos? Eu me ajoelhei aos pés dela e pedi perdão e beijei o sapato dela e disse foi aquele anão de merda e contei tudo para ela e pedi perdão novamente e me lembrei de Sabrina rastejando agarrada na minha perna de pinos. E agora? o que vamos fazer?, disse Paula. Deixa comigo, eu disse, e Paula foi embora e quando ela saiu sem ter tirado a peruca sem ter largado a bolsa sem ter tirado os óculos escuros e sem ter me dado um beijo eu rolei pelo chão como um cão danado xingando o anão de filho-da-puta.
(...)"
Da mesmíssima forma que quase toda mãe pode ser puta, quase toda puta pode ser mãe; existem situações na vida que os nomes se igualam tanto com a substância e os fenômenos que nos acostumamos à sua simulação. Tenho um exemplo em casa, meu irmão quase gêmeos. Geralmente a verdade por detrás da simulação se esconde sempre com as variações do dinheiro; outra simulação do valor supremo.
"(...)
O anão chegou às oito horas da noite e me vendo só na sala perguntou e a mulher? Mostrei a porta do quarto fechada e disse ela está lá dentro não quer falar com voce, me dá as fotos para trocar pela grana, e ele me deu as fotos, a do jornal e a dela nua linda olhando para mim. (Se Rubem Fonseca tivesse terminado o conto neste ponto, com certeza não estaria preocupado se acaso o diferenciassem de um cão. Ele sabe da verossimilhança dos nomes.) Agarrei o anão pelo pescoço e levantei e levantei ele no ar e ele se debateu e me fez cambalear pela sala batendo nos móveis até cairmos no chão e eu coloquei o joelho no peito dele e apertei até minhas mãos doerem e eu ver que ele estava morto. E depois apertei o pescoço dele e coloquei o ouvido no peito dele para ver se o coração batia e apertei de novo e de novo e de novo e passei o resto da noite apertando o pescoço dele. Quando o dia raiou eu o coloquei na mala e fechei a mala e abri a janela e aspirei o ar da manhã com a sofreguidão com que eu sorvia o ar que saía da boca de Paula quando nós fodíamos.
(...)"

64 contos de Rubem Fonseca, Companhia das Letras.

2 comentários:

Luciano Fraga disse...

Caro amigo Devir,lógicamente que as narrativas sempre nos conduzem a lembranças diversas,memórias, esse texto me fez lembrar destes versos:"O que é que eu posso fazer - um simples
cantador das coisas do porão? (Deus fez
os cães da rua pra morder vocês que sob a
luz da lua, os tratam como gente - é
claro! - a pontapés.)
Era uma vez um homem e seu tempo...
(Botas de sangue nas roupas de Lorca)".Eu tinha um amigo que quando o chamavam de Luluzinho, ele detestava e dizia que aquilo era o nome de cachorro de madame que cumpria o papel de lamber, não sei se ele (Luluzinho) gostava...Vai saber o que passa em cada natureza,R.F.dispensa comentários,estarei aqui, não abro fácil, forte abraço amigo.

Devir disse...

Prozac Blue - Crimson

Bem, eu acordei essa manhã imerso em uma nuvem de desepero
Eu passei minhas mãos pela cabeça
E puxei um tufo de cabelo preocupado
Eu fui ao meu psicológo, que estava soterrado em suas conjecturas
Ele disse, "Filho, você está lendo
muito Elephant Talk"

Ele disse, "Sobre a depressão, o negócio é que,
Bem, você não pode deixar ela te abater,
Você tem que entender o que que o mundo é:
Um circo cheio de aberrações e palhaços
Aonde você jamais vai conseguir agradar todo mundo,
Esse é um fato bem estabelecido",
E ele acrescenteu, "eu recomendo um quinto de Jack
E um frasco de Prozac"

O que você pode dar para um homem que tem tudo?
Você pode devolver o seu limite?
Você pode fazê-lo querer cantar?
Não, você só pode tirar dele,
E não há nada que ele possa fazer
Eu tenho a receita do médico para beber e consumir
Um frasco de Prozac Blues

Bem, eu acordei essa manhã e raspei minha cabeça
Na hora em que percebi o que eu havia feito, eu já estava morto
Eu fui ver o guardião parado na porta do Céu
Ele disse, "Eu espero que você tenha trazido bom estoque de... você sabe"