domingo, 11 de outubro de 2009

Da descoberta do Brasil

Peguei uma onda refratária daquele momento político, da grande reação contra o golpe de 1964, dos sobreviventes porém ainda perseguidos nas décadas de 70 e 80.
Meus textos são quase ainda um travalíngua, mas deve valer uma mínima mudança, quem sabe tombe a primeira peça de um dominó teórico, ou influencie um bando de estudantes do calcanhar de Aquiles.

Certa vez, no 1º colegial, aula dupla de literatura, redação que valeria 50% da nota do bimestre, depois de terminá-la, aguardei até o final da aula conversando com a professora.
Ela me reclamava que nem 30% entregaria uma "verdadeira" redação.
Eu lhe perguntei se ela sabia ensinar como fazer redação.
A professora então me perguntou como deveria ensinar a fazer uma "verdadeira" redação, que expressasse algo que "qualquer pessoa" pudesse saber/vivenciar o quê e o porquê de ter sido uma "verdadeira criação".
Depois de alguns instantes respondi que bastava dizer a cada aluno pessoalmente que ali poderiam mentir.
Obviamente, no primeiro momento, a professora não alcançou a maior razão necessária, que logo depois do domínio do ato de escrever, os alunos poderiam escolher livremente se suas criações seriam mentiras ou verdades, no decorrer da vida.
Ela ficou muito feliz quando entendeu a proposta, disse que, já no outro dia, experimentaria minha reflexão, em outro colégio, que também lecionava para crianças, no primário.
Na outra aula, ela me abraçou, e disse que o resultado da experiência foi impressionante.
Muitos aulas depois, quando lhe perguntei sobre os seus alunos do primário, como estavam "se entrando na redação", a professora, muito triste/mente disse: "A diretoria não gostou, fui transferida, tenho que lecionar Moral e Cívica, agora."
O tutu da dita dura.

Lembro que eu tentava entender de política como um todo, onde todas as pessoas pudessem estar operantes, atentas a todo momento.
Sinto muita saudade.
Eu fiquei muitas vezes deitado, sozinho, aos domingos, na grama da praça do por do sol, alto de Pinheiros/Vila Madalena, sonhando com revoluções.
Mas eu tinha apenas 16 anos e precisava trabalhar e estudar muito "para não repetir de ano".

Este poema do Affonso reflete aquela refração contra a ditadura, apesar de ter sido publicado quase 10 anos depois:

A implosão da mentira
Affonso Romano de Sant'Anna

Fragmento 1
Mentiram-me.

Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente.
Mentem de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem.

Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

Fragmento 2
Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente. Mentem.
Mentem caricatural- mente.
Mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.
Mentem deslavadamente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
em seus instantes de febre.Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre.E nessa trilha de mentiras
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.
E assim cada qual
mente industrial?mente,
mente partidária?mente,
mente incivil?mente,
mente tropical?mente,
mente incontinente?mente,
mente hereditária?mente,
mente, mente, mente.
E de tanto mentir tão brava/mente
constroem um país de mentira
—diária/mente.

Fragmento 3
Mentem no passado. E no presente
passam a mentira a limpo. E no futuro
mentem novamente.
Mentem fazendo o sol girar
em torno à terra medieval/mente.
Por isto, desta vez,
não é Galileu quem mente.
mas o tribunal que o julga
herege/mente.
Mentem como se Colombo
partindo do Ocidente para o Oriente
pudesse descobrir de mentira
um continente.
Mentem desde Cabral, em calmaria,
viajando pelo avesso, iludindo a corrente
em curso, transformando a história do país
num acidente de percurso.

Fragmento 4
Tanta mentira assim industriada
me faz partir para o deserto
penitente/mente, ou me exilar
com Mozart musical/mente em harpas
e oboés, como um solista vegetal
que absorve a vida indiferente.
Penso nos animais que nunca mentem,
mesmo se têm um caçador à sua frente.
Penso nos pássaros
cuja verdade do canto nos toca
matinalmente.
Penso nas flores
cuja verdade das cores
escorre no mel
silvestremente.
Penso no sol que morre diariamente
jorrando luz, embora
tenha a noite pela frente.

Fragmento 5
Página branca onde escrevo. Único espaço
de verdade que me resta. Onde transcrevo
o arroubo, a esperança, e onde tarde
ou cedo deposito meu espanto e medo.
Para tanta mentira só mesmo um poema
explosivo-conotativo
onde o advérbio e o adjetivo não mentem
ao substantivo
e a rima rebenta a frase
numa explosão da verdade.
a mentira repulsiva se não explode pra fora
pra dentro explode implosiva.
Este poema, que foi enviado ao Releituras pelo autor, foi publicado em diversos jornais em 1980.
Apesar do tempo decorrido, face aos acontecimentos políticos que vimos assistindo nesses últimos tempos, ele permanece atualíssimo.
Segundo Affonso Romano de Sant'Anna, foi publicado também em várias antologias, como "A Poesia Possível", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1987.

Meus agradecimentos a todos que se esforçam
ou fogem somente e assumidamente
para os recantos naturais da Arte&Razão,
Mas não se esquecem que terão todo tempo
do Mundo, para explodir ou explodir-se, se
as pessoas consciêntes (!), Pensadores e
Educadores, Industriais e Comerciais, Artistas
e todo tipo de Trabalhadores Liberais, e todos
com esmeros Conhecimentos e Discernimentos,
Deixarem aos 'outros' (!?) a "dialética" da função
da "Ordem e Progresso", para sofrer (óbvio !) ou
se melindrar com o sofrimento para os próximos.

3 comentários:

Luciano Fraga disse...

Caro amigo Devir,somos de uma mesma epóca(casa dos cinquenta),assim experimentamos alguns fatos de 64 parecidos, talvez,o prefeito da cidade onde nasci, havia sido preso e eu tentava e queria saber o motivo, pois tratava-se de um homem querido na cidade, ninguém nunca disse-me a verdade, apenas diziam que nada comentasse pois a carrocinha estava na cidade para levar as crianças. A História do Brasil que nos foi ensinada, uma farsa completa, a Educação Moral e Cívica, a discussão dos problemas brasileiros, enfim um tiro certeiro o seu texto e o maravilhoso poema,o importante de tudo isso é que ainda escapamos de sermos mentirosos, ou será que somos de verdade? Que herança! "O Brasil vai ficar rico...quando vendermos as nossas almas e a dos índios no leilão." Forte abraço,Hosana!

Devir disse...

Estou ouvindo Like a Virgem
com a garota de meu sonho
desta noite, ela amanhece
e se vai, maldito seja o sol

Mas, claro, não é com a madonna!!!

Grande abraço

Devir disse...

Rss, a Juliana tá roncando
só fiz aquele comment porque
ela leu "casa dos cinquenta) e riu
mas achou que é "um bonitão"

Sobre essa da carrocinha, muito legal, simbólico até para mim em dias muito atuais.

Lembro que não podia ouvir Vandré porque se não a polícia invadia...

Certa vez no quinto ano, rasguei o livro de Moral e Cívica na classe "a professora era muito feia", "ela mentia que não ia descontar nota", "meu cão morreu".

Escapamos?

Alma de índio, na conotação empregada, faz parecer que existe outra coisa com alma no Brasil.

Sabe aquela estórias de criança, não importa se importada, porque mesmo em qualquer tribo ou raça, vamos encontrar estórias semelhantes, quando meninos e meninas passam por provações para o crescimento..., então, quando não se é mais criança, é bom sempre lembrar daqueles momentos.

Acho que se eu disser que, se não fosse os documentos e a rotina, eu esqueceria minha idade, que até faria questão, mas com certeza a (sua) galera teria até 3 variantes de comentários: senil(com todo o contigente), bêbado(com a consequência mais rasteira de não mandar nem no próprio cú)e mentiroso(a marca patente de quem procura voltar para contar o que viu fora da caverna).

Sinceramente, tenho muita esperança que voce não é tão limitado, que vamos continuar escapando, fugindo e, claro, jamais desistindo de verdades.

Vale muito sua amizade, para mim voce não é ficção ou mentira, nem tampouco me preocuparia se fosse, porque me faz bem, assim, aqui e agora!!!
Que pode piorar, que pode melhorar, é vida, ambígua!!!
E eu não temo o que vier
de VIDA.

Forte abraço, Cara