terça-feira, 6 de abril de 2010

Nos jardins das satisfações dos desejos


A atriz mora em uma casa muito vasta, muito bem decorada, sequer música clássica permite para não estragar o silêncio e a ordem do seu universo. Ela sabe que não é a maior e também não é medíocre, sua vida real se sobressai ao cinema, teatro e ficção pessoal. Tirou o dia para entender o livro que ganhou de seu marido, e esperar a resposta do diretor para seu novo trabalho de cinema. Ela seria a perfeição se não ouvisse uma pequena tentação, incitando-a a impaciência de esperar também o inesperado. Todas tentativas de reprimir este mero desejo foram em vão.
Na manhã ou tarde semelhante daquele dia com as cortinas sempre fechadas ela escutou passos muito distante.
Uma bruxa bem vestida e aparentemente culta entrou pelo jardim preocupada para não ser vista por mais ninguém. Tocou a ampla porta de ferro da frente. O mordomo a atendeu.
- Em que posso lhe ajudar, senhora?
- Sim, sou a nova vizinha, moro descendo a rua.
O mordomo pede a atenção da atriz.
- Senhora?
A atriz faz um leve sinal de assentimento. O mordomo permite que a bruxa entre.
- Olá, não quero me intrometer... A bruxa elegantemente se aproxima da atriz, que responde educadamente.
- Não, que é isso.
- Sou sua nova vizinha, espero que não seja inconveniente para voce...
- Não, não. A atriz permanece ainda mais educada do que surpresa. Por favor, sente-se.
A bruxa agradece a hospitalidade, elogiando a casa da atriz.
- Que bela casa voce tem!
- Obrigada. Nós a aproveitamos muito. Por favor... Acena para que a bruxa a acompanhe à mesa. Aceita um café?
-Seria ótimo. Obrigada.
O mordomo pergunta para a atriz.
- E a senhora?
- O mesmo, Allan. Obrigada.
Ambas se sentam. A bruxa sem jamais perder a aparência de superioridade, retoma rapidamente a formalidade da situação.
- Estou visitando meus novos vizinhos. Acho importante conhecer seus vizinhos. Dar oi para eles. E a bruxa acentuando um ar de grandeza encara a atriz.
- Sim, é muito raro hoje em dia, mas é ótimo. A atriz responde automaticamente com um ar de deboche, logo seguindo para um enfrentamento inevitável.
- Em que casa está morando?
A bruxa demonstrando desprezo, responde sem esconder o fastio de ter que responder a mesma pergunta.
- Descendo a rua. Escondida na pequena floresta. A casa de tijolo.
O ar de deboche da atriz quase desaparece para iniciar franca preocupação com aquela senhora desconhecida que apareceu para acabar com sua tranquilidade.
- Acho que sei qual é. Diz, a atriz, com declarada incredulidade.
- É difícil ver da estrada. A bruxa percebe o quanto a atriz é frágil e já está à mercê do objetivo daquele feitiço mais comum.
Depois de um prolongado silêncio, o mordomo aparece acompanhado de uma secretária jovem bem uniformizada para servir o café. A bruxa agradece, acompanhando todo o ritual, inclusive o efeito do café preenchendo o fundo da xícara. O mordomo pergunta para a bruxa.
- Açúcar, Madama?
A bruxa não se dá pela resposta, sorve o café com satisfação, agradece novamente. A atriz agradece ao mordomo. Este, antes de se retirar, diz com solenidade.
- Senhora, se precisar, estarei por perto.
- Obrigada, Henry. A atriz entende, agradece, sorve o café em um único gole, e volta a atenção a bruxa, que logo recomeça seu intento.
- Então... Soube que tem um novo papel para interpretar.
- Sou candidata. Mas temo estar longe de conseguir.
- Não, não. Com certeza, ouvi que voce conseguiu.
A atriz estranha o fato de alguém mais, além dela, saber o resultado do teste, porque sequer havia contado para o marido. A bruxa, implacável, prossegue.
- Sim, é um... É um papel interessante?
A atriz tenta disfarçar com simpatia um princípio de terror nos olhos.
- Sim, muito.
- É sobre casamento?
- Talvez em algum sentido, mas...
- Seu marido está envolvido?
- Não.
- Uhmmm... Um garotinho saiu para brincar. Quando abriu a porta, ele viu o mundo. Quando passou pela porta... ele gerou um reflexo. O mal nasceu. O mal nasceu e seguiu o menino.
- Desculpe, o que é isso?
- Uma velha lenda. E a variação. Uma garotinha saiu para brincar. Perdida no mercado... como se meio nascida... Daí, não mais no mercado. Voce entende, não? Mas pelo beco atrás do mercado. Esse é o caminho para o palácio. Mas não é algo de que voce se lembre. O esquecimento é algo que acontece com todos nós. E... Eu? Sou a pior de todas. Onde eu estava? Sim... Há um assassinato no seu filme?
- Não, não é parte da história.
- Não. Acho que está enganada quanto a isso.
- Não.
- Assassinato brutal pra cassete. A bruxa por instante abandona sua compostura.
- Não gosto desse tipo de conversa. Imediatamente a atriz perde sua educação e delicadeza. Das coisas que voce disse. É melhor voce ir embora agora.
- Sim. Eu não consigo lembrar se é hoje... daqui a dois dias ou ontem. Se fosse 9:45... eu pensaria ter passado da meia noite. Por exemplo, se hoje fosse amanhã... voce nem lembraria... que voce tem uma conta não paga. Ações tem consequências. E, mesmo assim... existe a mágica. Se fosse amanhã... voce estaria sentada alí. A bruxa aponta o dedo em direção ao sofá.
A atriz fica olhando o dedo da bruxa apontado, aterrorizada vira muito lentamente a cabeça para olhar.
- Está vendo? A bruxa pergunta ironicamente.
A atriz se vê, sentada no sofá entre duas amigas atrizes, em completa postura de melancolia. O mordomo aparece trazendo o telefone. A atriz atende.
- Greg? Greg? Greg! Eu consegui! Consegui! Consegui! Que sorte! Que sorte! Que sorte!
Enquanto a atriz e as amigas festejavam o resultado do teste, seu marido desce alguns lances da escada para expiar o que acontecia, e suspeitosamente volta para quarto.

EM SUPERFÍCIE, NA VIDA DE CADA PESSOA, NADA SE RELACIONA, MAS NUMA VISÃO MAIS PROFUNDA, TUDO SE RELACIONA; O TEMPO E O ESPAÇO SEM INTERRUPÇÕES.

(Quer saber o resto da história, assista O Império Dos Sonhos, de David Lynch, que nunca fez um filme do gênero terror)

11 comentários:

Luciano Fraga disse...

Caro amigo Devir,continuando o papo do "Mimetismo...",confesso que experimentei a porção Caaronte, se posso (assim falar sobre a situação) que acabou transformando-se num dos momentos mais duros de minha vida.Caminhei por extensos corredores, desci andares por elevadores até chegar enfim ao térreo onde estava a Capela, este trejeto fiz conduzindo numa maca, meu pai que acabara de falecer,isto aconteceu há 30 anos,cultivei, não ganhei, uma depressão violenta que veio acompanhada de uma tristeza não identificada terrível, o que posteriormente ficou claro que foi causado por aquele momento, mas ainda assim pergunto-me o que posso tirar daqueles instantes e não tenho respostas. Assim penso também que minha porção involuntária de Caaronte, entre idas e vindas pode tirar alguma sábia lição: pelo menos entender que existe um enorme espaço entre ele (ou Eu) e o outro e assim talvez nunca necessite subjugar o que deve ser subjugado, destruir o que precisa ser destruido ou mesmo acolher o que precisa ser acolhido.Transformar as emoções em inspiração pode ser outra lição, bem como entender que o muro da dualidade não deve ser exorcizado e sim entalhado, sem confusão não há sabedoria e nada deve ser rejeitado como vulgar e nada é particularmente sagrado, tudo é substância para nossas vidas,até as medalhas... Fico a pensar como o personagem de CÃES um curta muito bom (Vou te mandar junto com CLemência), será que sou um imprestável, ou um emprestável.Seria esse os dois lados da moeda? Forte abraço.
PS. narro algo muito particular na confiança do amigo.

Anita Mendes disse...

quando comecei a ler o texto imaginei que tinha alguma coisa haver com David Lynch...
e é bem assim como esta escrito: as coisas nao precisam fazer sentido, bastam acontecer no momento que se (des)espera ...porque a fatalidade das coisas nao fazem sentido mesmo, muito menos o esperado.

Anita Mendes disse...

Caro devir,
esqueci de te deixar um beijo:
1 beijo! ;)
Anita.

Devir disse...

Porra, caro amigo, caríssimo irmão de imprestáveis contas caducas, ou urgentíssimas, se acaso a esperança não for falência por covardia. Voce está bem melhor, então, o que me parece após tão rigor na transparência, e me fez sentir nada de arrependimento, nas duras crísticas que lhe prestei.
Estou passando nestes instantes por algo tão duro quanto, mas depois conversamos ou escrevo por aqui. Agora, preciso descansar, dormir, logo apareço.

Forte abraço

Devir disse...

Anita, que amor!
Lynch é para os fortes na queda, para que se levantem e sequer olhem para trás.

Beijos

Luciano Fraga disse...

Caro amigo Devir, em nenhuma hipótese trato como algo a ser acertado, tipo prestação de contas, retratações e arrependimentos ou coisas do gênero, jamais! vamos crescendo cara, acho isso bom, não somos intocáveis, ou seríamos dois hipócritas, mentirosos, por outro lado também não considerei duras críticas, seguimos e um forte abraço.

Mariana Abi Asli disse...

muito interessante...não conhecia...vou procurar...


(querido grata pelos seus comentários em meu blog, será sempre bem vindo, Bjs fraternos)

mari

Devir disse...

Luciano, realmente, as contas caducam e continuam urgentes, talvez "apenas" para que exista "sempre" um "muro", ou "distanciamento", "desempreendimento", ou "algo" que justifique qualquer conceito de liberdade.
Quem pode saber, em geral? Ou quem quer saber das contas "alheias"?
Creio, para mim, que aquele ditado, minha liberdade termina aonde começa a do outro, diante desta dialética, atual ou eterna, se tornou risível.
Ao que serve tal "despreocupação voluntária"?
Se não pelo "absurdo" que escrevi, então, talvez, para certificar as "diferenças" humanas?
Que a diferença e a liberdade de escolhas, como fundamento do conceito de "racionalidade", se tornam a mesma coisa, acho que não é novidade, mas, como última pergunta AGORA, tem como fazer diferente, sem nos tornarmos, "enfim, rss", gado ou extensa massa de manobra política?

Voce é um grande amigo virtual (acompamham-me) e o fato de persistimos "em dialéticas", na aparência, "confusões", onde quem está de fora experimenta toda sorte de "reflexos do mal", é a "prestação de contas" mais necessária para cada SER HUMANO.

Quero chegar no (? conceito ?) "juizo final", e passar, se possível, direto para a "próxima", ou então honrar minha qualidade de morto e pagar um mínimo de esforço em direção ao outro, exatamente como jamais fiz em vida.

Que o outro é o inferno/jardim do édem também não é novidade, mas, para mim, é muito pouco, e "voltar" para contar para os outros jamais farei tal sentido.
Seguirei sempre adiante, tenha o outro o nome que tiver, porque sei que o outro, em essência, é o único caminho para se chegar nos outros.

Jogo linguísticos, sexo dos anjos, fraseologia de ocasiões, deixam-me muito preocupado, porque, do contrário, se me tornasse mais ainda despreocupado, nada valeria a pena, e, com certeza, também a alma seria pequena.

Já ouvi coisas muito preocupantes, mas tem uma muito interessante, que uma mulher com mais de 4 décadas de experiência, disse-me, para justificar (para mim!!!) um possível ejaculação precoce, apos 2:58 minustos de batidão:
" È que voce age como se estivesse ao contrário, na rua, que é lugar universal, voce se torna um nada, e, na intimidade, quer ser tudo, meu bem, o certo é ao contrário."

Eu gosto mais desta dialética do não espontânea, do que de afirmações sem a mínima dialética.

Ah, universal tão distante da realidade de cada ser!

Devir disse...

Igualmente, Mariana.
Faça um favor para si mesma, não permita que o anonimato seja uma pedra a atrapalhar seu caminho.

Eu também não me satisfaço com um ou outro lado, porque o gênero sexual não existe, quando o fator decisivo para a felicidade é a experiência, e só na experiência podemos escolher o que nos convém.

Assim como não me convém qualquer forma de relacionamento, AQUI, com anõnimos, simulacros, criminosos, etc., pessoas que fazem da desconstrução do mundo uma sem medida questão de maldade.

"Eu não peço nada mais do que eu posso dar"

Jeferson Cardoso disse...

Oi!

Jefhcardoso

Devir disse...

Oi!
Fui também dar uma olhada
muito bom seu blog
não pude atentar sobre vertentes
ou 'prenhascos'
numa ocasião mais tranquila
tenho certeza
de encontrar um mundo mais sóbrio
e possível
do que este...