terça-feira, 22 de junho de 2010

A mão de Deus

“ou a humanidade renuncia à violência
da lei de talião,
ou a pretendida práxis política radical
renova o terror do passado”. Adorno

De como a mais valia se tornou apenas mais prazer

Fred F não é um robô, mas trabalhando sempre parece assim. Ele não trabalha só, faz arte, então tem como objetivo o mundo e sabe que, nesse momento, não é o seu próprio mundo. O mundo de Fred F há muito tempo se perdeu, e agora só pode ouvir algumas notícias dele quando perde tempo divagando por galerias de arte, quando enfrenta aborrecimentos e mínimas doses de encanto durante saraus cada vez mais barulhentos, e quando vai ao cinema por acaso, sem escolher os filmes ou apenas para dormir, mesmo que jamais consiga, ou então, isso ele tenta esconder de todo mundo, quando, nos restaurantes onde almoça e janta, pede ás vezes um pouquinho de orégano para fumar. Sua vida portanto se tornou dividida entre estes dois mundos, o objetivo e o relapso. Entre prêmios por produção e condenações sem crimes cometidos.
Fred F envelhece por minuto e agradece a cada segundo por não sofrer dores físicas. Nunca se cansa porque jamais sente seus movimentos. Tanto em seu mundo quanto no mundo que também pertence aos outros. Nunca mais soube se é qualquer coisa ou se está em qualquer lugar, não sabe se realmente sente mais qualquer sensação além daquelas que nunca pode evitar.
Na última vez que recebeu notícias do que ainda pode lembrar o que é ou foi o seu mundo, Fred F encontrou algo que se diz lembrança ao tropeçar em uma mão e, por gentileza, ao tentar se desculpar, assustou-se; era uma mão abandonada, sem ninguém, atravessada no caminho, ainda quente. Ele a tocou e os seus minúsculos pelos se arrepiaram.
Fred F, paralisado, sem saber se de terror ou prazer, porque há muito tempo nem mais sabia de tais existências, e também sem saber se de dentro ou de fora daquele momento, escutou uma voz dizer: "tome cuidado com a mão de Deus".
Ele correu, correu muito rápido, assustado, chamando a atenção daquelas pessoas sentadas, ou deitadas, ou andando à deriva pelas ruas, visivelmente alucinadas por ingerirem produtos que dão o nome de droga, estava atrasado para tomar o último ônibus, se perdeu, passou várias vezes pelos mesmos alucinados, por vielas e bocas sujas, até que avistou seu ônibus partindo, entrou na frente, o motorista foi gentil, parou e abriu a porta. Mas Fred F não subiu a escada do ônibus, lembrou da mão de Deus e se arrependeu. Ele sempre foi muito religioso.
Fred F voltou tão rápido quanto pôde, evitando a todo custo fazer o que dizem o que é pensar, e, assim que percebeu a mão de Deus no mesmo lugar atravessada no caminho, teve a melhor notícia de todos os tempos do seu mundo. Imediatamente retirou o lenço que ganhara de seu pai e, tomando a mão de Deus ao colo, começou a limpá-la e beijá-la e apertá-la com muita força e carinho e tão forte foi sua recuperada capacidade de sentir que uma torrente de lágrimas cristalinas escorreu por sua face.
O mundo de Fred F o adormeceu abraçado à mão de Deus. O sol já raiando, o movimento frenético da cidade aumentando, a mesma voz de antes o acordou: "Devolva-me a mão." De repente sentiu um forte cutucão nas costas, era o mundo que também pertence aos outros, paus em riste e uma voz que jamais viria de dentro dele: "Levanta daí, lixo humano, se não quiser morrer."



9 comentários:

Valéria lima disse...

Além de ser um texto real, a imagem associada a ele o torna, de fato, monumental! Algumas pessoas oram para Deus pedindo ajuda, pedindo uma solução para seus problemas e quando deparam-se com suas realidades, preferem tapar os ouvidos e cerrar os olhos... mas ainda assim as respostas permanecem em suas mentes o tempo que lhes é necessário para a compreensão.

BeijooO*

Anônimo disse...

Acreditar que se tropeça na verdade não é tarefa fácil, mais difícil é conseguir compartilhá-la: ou as pessoas querem possui-la, ou a olham desconfiadas, com desdém.

Beijos.

Unknown disse...

material anti-didático de filosofia.

ador[n]ei!

Devir disse...

Tenho vontade de responder para as três em um mesmo comentário,mas isso me faria nadar contra a corrente; por mais cruel que pareça, o devir desce das alturas geladas para o sal, tanto no seu início quanto no seu final, não temos como tocar, essa é uma ação exclusiva da mão de Deus.
Para nós, é durante o que importa. Perde tempo quem faz aquelas clássicas perguntas: de onde vim, o que sou e para onde vou.

Devir disse...

Valéria, ao encontrar, jamais podemos não ser encontrados, por mais que nos esforçamos para não ouvir e nem ver.

Isso tanto para a própria quanto para a realidade do outro.
E, claro, de formas e duração diferentes para cada um,
e esse é mais um grande tesão de viver.

A variação da demora, rss geralmente se relaciona com os resultados das ações onde tal tesão foi inserido.
Obviamente, quando não existe uma expressiva ação de vida, apenas o corpo se encarrega do processo, dai então as diferenças de duração servem apenas para classificações, que nem sempre operam com tesão.

No post, Fred F, por jamais pedir ajuda ou esperar sua salva (ops) soluções, tampouco orar, encontrou a mão, e deu de ombros, mas voltou e logo tratou de quebrar o gelo. Mas infelizmente, seu titanic, rss, era por demais ingênuo.

Beijo

Devir disse...

É realmente uma dureza, Lara!
Muitas vezes também é muito difícil acreditar que as pessoas são outros iguais a nós, e quando entra na relação os interesses de poder, convenientemente de desconfiança, a verdade se torna impossível mesmo de acreditar.
Embora meu otimismo muitas vezes se exarceba, sempre acredito, nem tudo que a gente tropeça, derruba ou machuca, mesmo que seja o dedo do pé.
Todavia, o desdém sempre faz parte do excesso de bagagem, quando a se tem.
Seu comentário é muito feliz, mesmo que muita gente não perceba.
Fred F havia perdido inclusive sua bagagem tão natural, talvez por isso o final infeliz, do tal dia, tornou-o ainda mais triste.
Mas creio que recuperou seu devir, ou não, o que acha?

Beijo

Devir disse...

Quando todo bem
sabe que o sal não precisa
prevalecer só no final

voce vem, devir do tempo
antes negar o ritual

sucarne exberra
carmante insurra
causardor emimente
amoretanto mi fugar
adentrovertido asser
aquiaíali adura fressa

Quem por voce, Isadora
compactem quereres
prontos, ousa?

E assim, lá se foi adornos
quando filomorria
alguns misoneísmos
em misantropias

Devir disse...

A corrente não é de agora
também não demora, e só
sou à favor, refeito otário
porque nunca pelo contrário

Quando qualquer linguagem
leva-me a tão somente duas
escolhas de fatos consumados
bicho escroto ou pega ou come

Rss, mas se enfim nova atitude
de três, mulher, fato em aberto
monumento, exclusão ou consciência
que posso eu, se, fora e louco?

Oh Deus, escolher pelos lábios
atraves do olhar ou pela atitude?
Ou ser normal, fingir macho alfa
ou ser a fome, imagem e atitude?

Questões perguntas caras à poesia
imperfeitas aos contos sem fadas
tão propícias aguerridas ao romance
ah gostosa olhável destronável vida

Devir disse...

Lara, veja nessa 'colinha, uma de minhas preocupações reais:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/06/celebridade-e-barbarie/

Devir é presente, demasiadamente imediato!!!

Um abraço bem em silêncio