sábado, 15 de agosto de 2009

O homem no vale dos medos



Um poema de meu poeta/mor, que creio exato para lhe mostrar como exemplo de destinatário individual, sem a confusão com o 'indivíduo particular ou pessoal', o mais seguro caminho para o "inquestionável" indivíduo universal. Onde individualismo se diferencia de egoísmo.
Mas antes, vamos prosear um pouquinho.
Concordei com a irõnia desde o princípio porque é a verdade.
Talvez pelos meus 49 anos pude flertar mais uma vez com o medo, sem no entanto me espantar, porque costumo assistir diversas vezes aos grandes filmes, produtos diretos e indiretos da ideologia norte americana.
Tudo aconteceu como se fosse o vale das sombras.
O homem em sua atitude insana para voltar ou transcender às origens: quando não havia nomes, sequer visibilidade.
A irônia não nasceu depois do espanto, como eu disse em comentário aqui, ontem;
ela é sempre uma decisão tomada;
e o cinema se farta deste fenômeno.
Fernando Meirelles construiu uma excelente cópia desta realidade, por saber que esta não pode ser criada em cativeiro, porque não temos tal capacidade.
No seu filme O Ensaio da Cegueira retratou o tema do herói, como um verdadeiro mestre, apontando para as estrêlas, e o verdadeiro aluno enxergando o futuro.
Mas tudo ainda pode estar acontecendo, e não por questão de sorte, costume ou genética, poderemos seguir para além da irônia.
Mormente, sem ela, nos entregamos a uma letargia tão agradável que, se alguém questionar, temos outras mil questões de significados mais alegóricos do que reais, para responder. Como se, filosofica/poeticamente falando, com a morte de Deus, morreu também NOSSOS HERÓIS e, claro, nossos pais e ideais.
Há pensadores que defendem esta "naturalidade" típica de um modelo de civilização.
Tal idealidade de "natureza" humana é o sonho da propaganda e marketing; basta excitar o homem com simulacros dos Mortos.
Há muito espanto quando nos colocamos diante de tais modelos.
Eu também disse isso, que serviu como exemplo, que omiti por irônia, porque a maioria dos leitores não dariam atenção e não, a exemplo tambem, porém desnecessário "ruminar" agora, teriam tempo.
M. Night Shyamalan ilustrou muito bem, no filme A Vila, como a modernidade, ao tentar resolver todos os problemas, questões e desejos do homem, também o transformou em sua própria sombra.
Estamos todos convivendo em um imensurável vale das sombras, e como sombras, se alguém se espantar, tenha certeza absoluta, alí voce poderá encontrar vida.
Infelizmente, não evoluimos "o bastante" para aceitar e compreender o motivo de nossos espantos.
Finalizando este texto/comentário mais elaborado, fica uma pergunta, pelo menos em mim, que não quer se calar, mesmo quando todos nós já sabemos a resposta(?):
Se o homem se tornou sua própria sombra, nós somos sombra de que ou de quem?


§


Eu, etiqueta
Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens,
terras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reicindência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar a minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar, ora bizarro,
em língua nacional ou qualquer língua
( qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sadália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas idiossincrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco da roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
saio da estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem,
meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.
Carlos Drummond de Andrade
O corpo. Editora Record, 1984.

7 comentários:

Anônimo disse...

Amo este Carlos! Um belo poema, não o conhecia!

Também, sou eu um dos demônios "fabricante" das coisas. E isso não retrocederá, pelo menos no mundo, em mim pode ser, no futuro.

Quanto ao medo e a cegueira, segue atento!

Devir disse...

Minha bela Roberta
(minha, sem imperação)
o dêmonio 'vesta' algo

Posso ser louco para ser contra
porém abomino retrocessos e rss
não rasgo dinheiro, nem fudendo!!!

Estou muito atento, agradeço
oportunamente

Luciano Fraga disse...

Caro amigo Devir, dizem que não é muito fácil ver a "erva nas coisas e nas palavras" e continuo ao lado do Sr F.N."um aforismo(bom) deve ser ruminado".Quanto ao Sr Carlos, quem sou (sombra da sombra, da sombra da SOBRA) para falar, genial, volto, mas deixo um anárquico abraço mestre.

Luciano Fraga disse...

Amigo Devir, há tempos encontrei uma frase de uma amiga escritora que dizia:"carrego segredos que não conto nem pra mim".Desse modo posso concordar com você no que tange ao espanto.O que será que ainda pode nos causar espanto? Será que já vimos de tudo mesmo? Será que não falta ainda um pouco? Ironicamente penso e concordo que somos despreparados mesmo, tá vendo minha espantosa incoerência? Aqui eu me espanto de tanto pensar, abraço mestre, belo domingo, sem pudins e azeitonas.

Devir disse...

Confesso que não entendi
as azeitonas e pudins
talvez são metáforas de doce e salgado, ou entradas e saídas e
o vinho sêco enfim um desarrego.
Confio nos mestres
como bom pupilo.

"Não esqueçamos que os deuses (principalmente osolimpianos) desfrutavam sua bela e serena imortalidade ocupando lugar verdadeiramente privilegiado: de espectadores da vida.
Esses deuses nos revelam o lado glorioso, e perfeito da vida, ao mesmo tempo que, enquanto espectadores, tornam este mundo e os feitos humanos algo digno de admiração. De certa forma, sem espectadores o mundo seria por de-mais imperfeito: o olho corrige, regra, mede, cria. Com a filosofia, os mortais encontraram aquilo que os iguala aos deuses. Coube, portanto, ao filósofo substituir a inveja da imortalidade pelo Ser."

ENTRE O ESPANTO E O PENSAR
Rosângela de Araújo Ainbinder

Devir disse...

"Fiquei sem respiração. Nunca, antes desses últimos dias, tinha pressentido o que queria dizer “existir”. Era como os outros, como os que passeiam à beira-mar com suas roupas de primavera. Dizia como eles: o mar é verde; aquele ponto branco lá no alto é uma gaivota, mas eu não sentia que aquilo existisse, que a gaivota fosse uma “gaivota-existente”; comumente a existência se esconde. Está presente, à nossa volta, em nós, ela somos nós, não podemos dizer duas palavras sem mencioná-la, e afinal não a tocamos. Quando julgava estar pensando nela, creio que não pensava em nada, tinha a cabeça vazia ou apenas uma palavra na cabeça, a palavra “ser”. Ou então pensava ... como dizer? Pensava na pertinência, dizia a mim mesmo que o mar pertencia à classe dos objetos verdes ou que o verde fazia parte das qualidades do mar. Mesmo quando olhava para as coisas, estava muito longe de sonhar que essas coisas existiam: apareciam-me como um cenário. Tomava-as nas mãos, elas me serviam de utensílios, eu previa suas resistências. Mas tudo isso ocorria na superfície. Se me tivessem perguntado o que era a existência,teria respondido de boa fé que não era nada, apenas uma forma vazia que vinha se juntar às coisas exteriormente, sem modificar em nada sua natureza. E depois foi isto: de repente, ali estava, claro como o dia: a existência subitamente se revelara. Perdera seu aspecto inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa das coisas, aquela raiz estava sovada de existência. Ou antes, a raiz, as grades do jardim, o banco,a relva rala do gramado, tudo se desvanecera; a diversidade das coisas, sua individualidade, eram apenas uma aparência,um verniz. Esse verniz se dissolvera, restavam massas monstruosas e moles, em desordem – nuas, de uma nudez apavorante e obscena."

A Náusea, Sartre.

Luciano, esta náusea que provém do "abrir um pouco mais a vista" quer ficar, tomar o ser como exatamente era um 'escrevo' da admiração lúdica, onde o espanto era tão somente sustinhos, rss.
E esta náusea só se desfaz diante do pertinente Espanto, quando a criança cresce, abre o que pode os olhos sobre o não-ser; tão diferente do nada infantil.

Luciano Fraga disse...

Amigo Devir,passando rapidamente,não se espante, as azeitonas e pudins:uma leve brincadeira referente a um ator/cantor da Bahia-Zéu Brito que canta uma sátira sobre os domingos que nós extrapolamos um pouco com as guloseimas e depois vem aquela AZIA de matar,volto depois,tá muito bom, abraço.