quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Holofotes nas trevas



"Sinto ao escrever este diário o nojo exutório dos diários secretos,
em que o ato de escrever é uma espécie de chaga que infligimos
a nós mesmos para provocar uma supuração, uma expedição
intensa de matéria purulenta."
Rubem Fonseca

Epidemia total

Eu nasci na sala, e aqui no Brasil a sala é uma espécie de manjedoura sagrada ao contrário, onde recebemos os outros, onde sempre paramos a conversa para ouvir o caminhão de batatas insistir em seu desejo de vender, seja neste monitor ou na televisão.
Nasci no sofá e olhava a mesa de centro com piedade de mundo. Às vezes ficava sobre a mesa de espelho, tentava conversar também, e assim me sentia crescendo. O chão devia ser sujo, nem podia imaginar de onde viam tantos pés diferentes, nesta época os pés, calçados ou não, se pareciam pés de extraterrestres.
Aprendi a arrumar encrenca, noutras palavras, desenvolvi uma técnica infalível, quando aparecia pésinhos.
Qual seria o tamanho do mundo? Meus bracinhos alcançavam minha parte mole da cabeça para coçar, pensando.
Escutava muitos comentários bócio sobre esta parte mole da cabeça. Atualmente, só tolero lê-los.
Quando pisei pela primeira vez no chão, é impossível esquecer, levei uma bundada na testa, não ficou cicatriz porque foi uma bunda bem servida, tim tim para os sentidos.
Enquanto isso a manjedoura sagrada ao contrário, fervia movimentos, zig zags hipnotizantes para quem acabara de nascer.
Minha mãe sempre comprou as batatas. Carmem Miranda não a convenceu.
Ela parece alemã descendente de Lampião, ou vice e versa, e tanto faz. Esta observação só consigo nos tempos atuais.
Nunca tive empregada. Mas gostaria de ter sido cuidado na higiene por uma menina enfermeira formada e uniformizada, ou só de avental e unhas pintadas de vermelho.
Eu jamais experimentei talco, fragrâncias e muitos beijinhos, cheirinhos em minhas dobrinhas, pésinho já para cima.
Lembranças agradáveis de tempos que não tive, que me faltaram.
Quando olhei pela primeira vez para a janela onde poderia mandar mensagens instantâneas, uma webcan bateu na minha testa, este dejavu deixou uma grande cicatriz, que eu precisei colocar uma luz sépia, então conquistei uma notável fama de erudito infeliz. Então, miudinho ainda, roubava óculos escuros da sala e curtia uma de superstar.
Na primeira vez que, uma bebezinha ainda, um ano e meio bem calculado, me pediu para fazer uma pose para eternidades de calendário como aquarelas de supermercado, olhei para a porta e percebi que realmente estava mais seguro em meu quarto. Desliguei-me, ou me desconectei, e sai na calçada. Matei minha curiosidade do caminhão de batatas, à partir de então megafones passaram a me irritar.
Fui para o orkut e apreciava aquele diálogo quase instântaneo. Havia frações de interlúdios onde eu conseguia sentir prazer de viver em casas, como qualquer um. Foi a primeira experiência também em se tornar um, eu tinha aproximadamente 4 anos e poucos meses e tentava, à vezes conseguia, encontrar outra pessoa, que se comunicasse só em poesia. Mas a dificuldade jamais estava nas pessoas. O próprio caráter se tornou apenas residual dos grandes.
É a mesma coisa que pode está acontecendo neste momento, agora que resolvi, já a um bom tempo, abandonar o orkut e me isolar nesta espécie de diário que não precisa exatamente respeitar a espécie. Há quem escrevo, assim distante das janelas de apartamentos à noite? Pela manhã, meu apartamento da cidade causa ressaca, sem o sentido banana bem brasileiro.
Ao desistir, definitivamente, da comunicação poética, porque queira ou não Caetano está com a razão, amor em palavras é cinema mudo, então, para não desligar de vez este instrumento, passei a investigar possibilidades de encarnações através de radiações - as cores da radiação contra o efeito sépia cria tantas outras cores maravilhosas - algo tão estranho como os sinais, no cinema do Shalamayan; antes de aparecer a criatura, sempre normatizada em misto de estrangeiro e ameaçador. Ou de alguma forma doente, incapacitado ou proibido de ser um.
Tenho, já que esta fase parece ou chegou em seu limite, duas alternativas triviais, ou evoluo para a moribunda e particular literatura, ou sigo os ratos ao som do flautista através do pipilar - o twitter para os mais modernos.
Por isso que eu amo quem está feliz, e amo muito este tempo, porque apesar da minha idade e esta divisão, ou cisão, como diz minha amada eterna nua em pé sobre o divã, "fenômenos", e a minha infância promete.
Obviamente, eu e todos que me conhecem, sabem que vou para os dois lados, porque sou também irredutível. Eu não faço escolhas. Eu recuso esta liberdade. Não fico de um lado oposto. Também não fico encima do muro. Ou derrubo o muro, ou nada.
Não é pipilação, twittar acontece, rss, o outro sempre escolhe por mim. Mas jamais vou deixar de ouvir também a música Alone(acústico), Pearl Jam e Alice In Chains.

Com o título deste post, eu não podia deixar de publicar este poema, da Marina Colasanti, que, perdoem-me a expressão(já traduzida para que todos sem excessões entendam), de foder o próprio diabo, vestido de prada ou de conga:

Sexta-feira à noite
Os homens acariciam o clitóris das esposas
Com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
Contam dinheiro, papéis, documentos
E folheiam nas revistas
A vida dos seus ídolos.
Sexta-feira à noite
Os homens penetram suas esposas
Com tédio e pénis.
O mesmo tédio com que todos os dias
Enfiam o carro na garagem
O dedo no nariz
E metem a mão no bolso
Para coçar o saco.
Sexta-feira à noite
Os homens ressonam de borco
Enquanto as mulheres no escuro
Encaram seu destino
E sonham com o príncipe encantado.

6 comentários:

Ana Beatriz Frusca disse...

...e das trevas fez-se a luz.


o homem descobre o fogo e dele se apropria. desse fogo acende outro fogo e deste mais um outro.

e passa a se diferenciar dos outros animais, detentor que é da matéria/energia da primeira fogueira ancestral, mãe da tocha olímpica que guiou a humanidade em seu curso histórico.

e toda e qualquer luz se origina de uma única e primeira fonte de luz.
Beijos.
PS: Ah tá...viajei no comentário, né? rsrsrs. Mas teu blog é uma viagem.
Bom fim de semana!

Devir disse...

É quase como diz o poeta Pessoa,
o eterno triste que não sabe
que é triste, porque na tristeza
somos todos iguais.
Mas que não se enganem os novos
ou aspirantes, aquela e esta, Bia,
realmente faz com que Viagem e -
perdoe-me a sutileza - Virginidade,
uma após a outra se perder, é e será sempre preciso.

Grande abraço

Devir disse...

Se vejo que a questão, Bia
já não é mais
estar ou não estar
que sobreveio depois
da questão Ser ou não Ser
e esta depois do Cogito
e estamos então em exposição
dentro ou fora da lata
do poeta, talvez, pergunto -
o que podemos fazer? -
Quê exposição é esta, absoluta?

Já não importa mais
o motivo mais grave ou real
para, por exemplo, estar ser
só, por escolha
ou isolado.

Nesse tempo
Robinson Crusoé
teria câmeras
na ilha
e na mente, ganharia
dinheiro e fama
ou se recusaria
a pensar no presente
imediato
e sairia da cabana
somente para sobreviver.

É possível pensar no presente
sem se expor
no enlatado?

O que pensa um extrato?

Esta pequena viagem, agora
é porque passei no verso e
perverso, e o post atual
é uma obra prima
do Hebert Vianna.

A mesma situação apontada
na visita do Pianista
em comentário.

Então, perceba o Time
o tempo, a questão
se não mais é do estar
nem tambem do ser
qual será a boa nova
deste começo de milênio
que angustia e portanto
engravida a vida
de arte e reflexões?

Assim, depois do império da razão
depois do império da existência
qual seria o novo império?

Quem nos enlata?

Eu arrisco um chute
no monstro contemporâneo
o imperador da Gentileza
só para conferir
se está dormindo ou morto.

Acredito que voce
não vai ficar apavorada, rss

Abraço

Luciano Fraga disse...

Caro amigo Devir,Colassanti,retratou a sexta feira dos instintos ou dos extintos,para muitos o dia da vingança,contra suas vidas rotineiras, seus hábitos e o desenvolvimento de um trabalho de convencimento para provar a si mesmo que existe,será "preciso enfrentar a humanidade" para tal?Muitas pessoas ainda cultivam o costume ou a doença das senzalas, de tirar os sapatos quando vão ocupar uma sala,considero a minha como meu quintal,sem presságios,que post!Forte abraço,gira o gêlo...

Devir disse...

Voce colocou uma imagem de sala que realmente dá saudade, aqui em São Paulo, capital. Onde nosso quintal se entendia, muitas vezes, à calçada e a toda comunidade, em comunhão de valores e respeito.

E eu enfrento, sim, se preciso for, a humanidade contida em tudo, começando por mim. Onde, talvez pelo interesse de poucos, seguem o sentido propalado com fim muito bem calculado.

Quando vejo programas de calouros, do tipo destes atuais, sinto muita compaixão por pessoas que não descobriram qual o seu talento ou o caminho mais rasoável para encontrar, quase sempre, no fundo, a sua tal identidade; que sem a qual, literalmente não é nada mais que um morador de senzala.

E o signo do poema da Marina, por sorte ou graça de Deus, não a faz um ícone, um índex e, muito menos, um símbolo dentre tantos confusos.

Grande abraço, Luciano

pianistaboxeador21 disse...

Bom