quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Eu não sei falar de meus problemas



Viva para a Vida!

Este texto é um trecho do livro Malone Morre, de Samuel Beckett, tradução do saudoso Paulo Leminsk, da editora Brasiliense, 1986. Este livro me serviu muito para aprender a escrever palavras e idéias que eu jamais iria aprender nas escolas. Ainda é possível lembrar como o estudo sobre metáfora e sua diferença para a metonímia, sob a metodologia da Ditadura, transformava-me dia a dia em "porco, ovelha, galinha, rato, mosquito, lesma, larva, etc", seres somente úteis (para quê?) e incapazes de transcender ao chiqueiro do Estado Nação, da época, mas que, ainda infelizmente, sob tal Democracia, continua a mesma porcaria. Nem tanto pela Educação Oficial, voltada a formar cidadãos "práticos" para servir, mas muito pela corrupção de berço colonialista/exploratória, que se prolonga indefinidamente. Não se trata de incitar ódio aos estrangeiros, não há mais tempo para isso. Não se trata sequer de incitar ódio pura e simplesmente. Se trata, urgentemente, de não repetir os mesmos erros, de acabar com a desonestidade do forte contra o fraco, e assumir postura Humana, em todos os momentos, seja em público, seja na intimidade. Milhões são gastos com média, desde o político/jurídico até a beleza/pessoal, enquanto isso a fome aumenta na Sociedade e a violência, como consequência, impera na Família. O dinheiro se concentra ainda com a minoria, e a quem dela pertence, sob o álibi de que lutou por seus privilégios, quando são roubados ou assassinados, rapidamente culpam a falta de humanidade. Perfeitos idiotas, como seriam quaisquer ursinhos panda, diante de predadores famintos, argumentando por sua beleza e preciosidade(?).

Os grandes dias de Luis caíam em Dezembro e Janeiro, e de Fevereiro em diante ele esperava com ansiedade a volta dessa temporada, cujo evento principal é sem dúvidas a celebração do nascimento do Salvador, em um estábulo, sempre se perguntando se ia durar até lá.
Então ele saia trazendo debaixo do braço, na caixa, as facas longamente afiadas na véspera à beira do fogo e, no bolso, enrolado em papel, o avental destinado a proteger durante o trabalho sua roupa de usar aos domingos e dias de festas.
E ao pensar que ele, Luisão, estava a caminho desta distante granja onde era esperado, e que apesar de sua avançada idade ainda precisavam dele, que podia o que os jovens não podiam, então seu velho coração palpitava dentro da gaiola.
Dessas expedições, ele voltava tarde da noite, bêbado e esgotado pela longa caminhada e pela emoção.
E durante dias, ele só falava do porco que tinha mandado, eu diria para o outro mundo se não soubesse que os porcos só tem esse mundo aqui, conversa que matava sua família de tédio.
Mas ninguém se atrevia a dizer nada, pois todos o temiam.
Sim, na idade quando a maior parte das pessoas se encolhe e se retrai, como pedindo desculpas por ainda estar nesse mundo, Luisão era temido e estava numa posição em que podia fazer o que bem entendesse.
E até sua jovem esposa já tinha desistido de domar o seu temperamento, usando sua buceta, o grande trunfo das jovens esposas.
Ela sabia o que ele faria se ela se recusasse a abrir sua buceta a ele.
Ele, inclusive, exigia que ela lhe facilitasse a tarefa, através de recursos que muitas vezes lhe pareciam exorbitantes.
E ao menor sinal de rebelião de sua parte, ele ia até o banheiro buscar alguma coisa boa para bater nela até que voltasse a pensar de maneira razoável.
Isso cá entre nós.
E para voltar aos porcos, Luisão continuava a se ocupar dos seus, à noite, à luz da candeia, daquele que ele tinha acabado de matar, até o dia quando o chamavam para matar um outro.
Então sua conversa girava completamente sobre este último porco, tão diferente dos outros sob todos os aspectos, tão diferente, no entanto, o mesmo.
Todos os porcos são iguais, quando a gente os conhece bem, se debatendo, gemendo e se extinguindo mais ou menos da mesma maneira, uma maneira que é só deles e que não se deve confundir com o modo de morrer de uma ovelha ou de um cabrito, por exemplo.
Desde o fim de Novembro, sua família esperava com impaciência pela hora de espalhar esterco e plantar feijão.
A fazendola dos Luis ficava numa depressão, inundada no inverno, frita no verão.
Chegava-se até ela passando por uns campos muito bonitos.
Mas esses campos não pertenciam aos Luis, mas a outros fazendeiros que viviam longe do lugar.
Na estação certa, junquilhos e narcísos floresciam por alí com uma exuberância extraordinária.
Era para esse lugar que Luisão conduzia as cabras, sorrateiramente, ao cair da tarde.
Estranho dizer mas Luisão não tinha, para criar porcos, o mesmo talento que tinha para matá-los.
Era raro que um porco seu passasse dos sessenta quilos.
Trancado no chiqueiro desde a chegada, no mes de Abril, o porco lá ficava até o dia da sua morte, um pouco antes do natal.
Pois Luisão teimava em temer, para seus porcos, embora cada ano o desmentisse, os efeitos emagrecedores do exercício.
Por eles, temia também a luz do dia e o ar livre.
Por fim, era um porco fraco, cego e magro que ele deitava de costas, as patas amarradas, e matava, indignado mas sem pressa, berrando a plenos pulmões que se tratava de um ingrato.
Ele não podia ou não queria compreender que a culpa não era do porco, mas dele mesmo, que não o tinha tratado direito.
E ele persistia no erro.
Mundo morto, sem água, sem ar.
É isso, lembre.
Aqui e ali, no leito de uma cratera, a sombra de um líquen murcho.
É noite de trezentas horas.
Mais querida das luzes, pálida, chuvosa, a menos vaidosa das claridades.
É isso, balbucie.
Quanto será que durou, cinco, dez minutos?
Sim, não mais, não muito mais.
Mas meu pedacinho de céu ainda brilha.
Antigamente, eu contava, contava até trezentos, quatrocentos, e com outras coisas mais, as pancadas de chuva, os sinos, a babel canora dos pardais ao amanhecer, eu contava, ou por nada, por contar, depois, eu dividia tudo por sessenta.
Isso fazia o tempo passar, eu era tempo, eu devorava o mundo.
Não mais, atualmente.
A gente muda.
É só continuar vivendo.

"Deus lhe pague"

3 comentários:

Luciano Fraga disse...

Caro amigo Devir, fui arremessado de encontro a esta bela poesia:
"Era uma vez
um tempo de pardais
de verdes nos quintais
faz muito tempo atrás
quando ainda havia fadas

Num bonde havia
um anjo pra guiar
outro pra dar lugar
pra quem chegar sentar
de duvidar, de admirar

Havia frutos num pomar qualquer
de se tirar do pé
no tempo em que os casais
podiam mais se namorar
nos lampiões de gás
sem os ladrões atrás
tempo em que o medo se chamou jamais..." Seguimos vivendo,viva S. Becket, grande abraço.

Devir disse...

Porra!!!

Aonde foram parar aqueles tempos?
Será que madonna os comprou
para queimá-los em seu forno
de escamas e fumaças?

Será o que será, caro amigo Luciano

Já não nos permitem perguntar...

Queremos tanto confiar...
o que podemos criar
nesse tempo da desatenção alegre?

Porcos se matam
para anestesiar a fome
de operários insones.

Devir disse...

Ou desempregados, ou jovens que não compreendem "para quê" a escola,ou simplesmente acuados diante do império da imagem?
Da imagem de sucesso atravez do consumo, e se não se pode consumir o que os tornariam bonitos e aceitos, porco ou não, não sabem o que fazer.
Oprimidos desde o próprio coração, passando pela família e, definitivamente, pelo Estado Sociedade.
Nesta evolução civilizatória tão anunciada pelos noticiários policiais e programas de "humor", até mesmo o top do escárnio, o Jô, ficam pelo caminho, ou resignados em seus afazeres de "penitência", ou são zumbisados pela droga, então presos ou acolhidos pela morte.
Claro que existem exemplos de quem venceu, bem contados e controlados, para fornecer um certo álibe, para justificar a questão da "luta entre as espécies"; metáfora da irracionalidade.