terça-feira, 26 de janeiro de 2010

bicicleta e jogar pedras ninguém esquece

"Cristo nunca teve "nem a fé, nem a esperança", mas era de uma "caridade perfeita". (Suma Teológica, São Tomáz)


COISAS DEMASIADAMENTE HUMANAS

Coisas; nome comum entre crianças, quando somos, e acreditamos no encanto de cada detalhe novo no mundo.
Lembro do dia que até então jamais tinha visto um telefone sem fio, mesmo que eu e a turma já falávamos coisas como coisa natural.
Na escola, era o sonho da menina mais bonita para falar com suas fiéis companheiras.
No campinho, tinha um moleque tão sério que até hoje dá graças a Deus quando sua mãe ainda não tinha dessas coisas; dos poucos amigos que me restam da infância.
E, perdão, porra, parece até que estou ressentindo minha infância, tipo pixando exatamente o que é melhor na vida, e o que sempre tem sido o melhor, o encantamento.
Esta aparência aceito como um preço justo, porque escolhi não abandoná-lo.
Sei que o valor que recebem é dinheiro de brincadeirinha.
Eu ia até a venda do seu das quantas e voltava encantado com diversas coisas.
Há na minha infância uma tartaruga no jardim de árvores minúsculas de um casal de japoneses relíquia que cismei que ela cismou comigo.
Foi a primeira vez que a vi, mas fiquei encantado mesmo foi com a cisma.
Cheguei em casa e fingi que não estava pensando na cisma enquanto conversava.
Minha família, meus amigos e até eu mesmo, todos preferiam que eu não ficasse pensando em geral, já que não sabiam em que eu estava pensando.
Na verdade eu estava pensando na cisma enquanto todos pensavam que eu cismava de tudo.
E fingir, para agradar, que eu não estava pensando, criava sensações absurdas, energias térmicas involuntárias em meu corpo.
Provocava acelerações e repousos imprevistos, e tantas outras energias naturais.
A necessidade de dominar aquelas forças extraordinárias aditava todos esses reflexos incondicionados.
A cada domínio para meu sustento espiritual - por exemplo, a inércia - precisei perder ou sofrer uma parte do corpo.
Virei um doutor em dores; alguns elogiavam, até me consultavam, outros (a maioria) diziam que eu não passava de um coitado hipocondríaco.
Nunca aceitei quebrar um braço, perna, qualquer osso; isto sempre esteve fora das negociações.
Conforme me especializava nos negócios de saúde, mais negócios apareciam, passei a ter uma clientela fiel.
O último grande negócio, depois que passei a negociar apenas ganhos de partes do corpo, aconteceu há quase dois anos e meio. De um momento para outro cismei que meu amigo Mantovani precisava desabafar uma ferida horrível. Nem mesmo ele sabia que a ferida estava prestes a se inflamar. Feridas são como as partes prejudicadas de um mal negócio. Eu podia antever, para os próximos poucos dias, o pus se formar, a carne inchar, a febre e a corrida de corações sangrando da sua esposa e filhos.
Montovani sentado em sua cadeira de rodas esperava a ambulância chegar, na calçada, estudando o movimento da avenida 9 de Julho. O tempo parou, ou sumiu, então aproveitei e provoquei seu desabafo.
Fiz uma feliz paródia do O Idiota, de Dostoieviski, sobre O MEU problema de doença, frisando intensamente que se tratava de meu problema de doença, salientando que apenas os fortes não se preocupam com problemas de saúde. Acertei o alvo, cortei o pescoço como um verdadeiro samurai que jamais feriria uma vítima. Ele desandou falar sobre como a vida é tão frágil.
Um final de semana, família grande, parentes e amigos, vários carros e até um ônibus de excursão com ar refrigerado.
"Eu ganhava muito bem, era um candidato promissor para ser diretor de uma multinacional. Eu já era gerente de compras, voce consegue imaginar uma indústria de transformação química de componentes avançados, então, eu ganhava muito bem, eu paguei sozinho todas as despesas, eu até coloquei combústivel em carro de quem nem conhecia, e o sujeito tinha uma companheira gostosa, muito gostosa, vestida de vermelho e salto alto, todo mundo ficou babando, vai vendo, fomos todos tomar banho de cachoeira, outros aproveitariam para pescar..."
Voce, Mantovani, o que tinha em mente, para voce, ao realizar esta excursão maravilhosa?
"Maravilhosa? Espera um pouco, que eu vou lhe contar o resto, o resto da minha vida maravilhosa que voce está vendo."
Graças a Deus, minha parte no negócio estava completada, porque naquele instante a ambulância chegou.
O Mantovani não voltou a andar - menos, claro! - mas ouvi dizer que ganhou um campeonato de xadrez no Sesc.
Acho que foi eu que lhe ensinei a jogar com a vida, ele ficava do outro da sala, eu gritava, pião 4 bispo dama, e nova partida se iniciava; eu nunca ganhava.
Neste dia perdi o medo de ambulância, carro de resgate, polícia, e pessoas sérias.
Devo isso, talvez, tudo, porque aprendi a entender os verdadeiros sentidos dos encantamentos.
Todos só oferecem duas alternativas profundas para se tomar assim que acabam.
Uma; ficar aborrecido, e então se deixar levar bem ou mal a partir do que sobrou.
Duas; esquecê-lo e voltar a levar a vida normal.
O que eu faço? Continuo encantado, não importa o que aconteça.
Tomara que nem mesmo a Morte leve meu encantamento embora.
Qual foi o meu ganho no negócio com o Mantovani? Vem saber.

7 comentários:

Luciano Fraga disse...

Caro amigo Devir, vejo assim as formas para encararmos as aparências e a realidade, seria como tentar por um lado buscar um conforto na adversidade e por outro sustentar um bom prognóstico para o futuro.Tipo otimismo e pessimismo, aquela velha máxima tudo tá bem quando acaba bem.Assim seguimos no dualismo, o mundo que conhecemos(desalentos, alegrias,mortes fracassos) e por outro um mundo imaginário e esse é o que deveríamos compreendê-lo.De um lado o encanto, do outro a realidade nua e para muitas pessoas(pudor) a nudez ainda choca.Ainda lembro quando tinha belos sonhos em que aprendia a montar numa bicicleta,olha que aprendi numa contra pedal(lembra dessa?), forte abraço.

Devir disse...

Rss, orra, se lembro, não se chamava frear...
Luciano, este comentário parecia que voce estava falando! comigo, e, não sei, parecia que esta imaginação não era só imaginação.
Ficar louco é assim, às vezes fazemos bestherois para cair na realidade.
Tenho a cisma que tudo isso sempre começa com um certo charme de fumar um cigarro bem feitinho de filtro e tudo que vimos certa vez na televisão, clarkent dos primeiros comerciais, essas coisas.
A mesma confusão danada que se pode tirar das respostas de qualquer macunaíma que se perdeu na imagem. O mundo atola, Mestre.
Dualismo e nonsense! Dois nós depois de uma única dentada, diria a sobrevivente, Anita.
Minha amiga Néia, quase visinha, esposa de um grande amigo da ativa, ficou encantada não sei com o quê, ela parou o carro para estacionar na garagem, chamou-me para que eu dissesse o significado de certa luz acesa no painel. Ela é uma negra estupenda, estava de mini saia jeans e camiseta vermelha. Disse, solta o freio de mão. Ela, só isso? Eu, é, voce sabe o que é uma encantamento? Ela, o que tem a ver com o freio? Eu, nada, apenas que existe, neste momento. Ela, voce não muda, né? Eu, mas voce não sabe como me esforço. Ela, lembrei, eu estava pensando mesmo em voce hoje, queria que voce visse se o carro está legal, voce podia testar, dar uma volta e acelerar bem. Eu, sem problemas.
Dei dois piques, fui e voltei até o final da rua. Entreguei as chaves e disse, seu carro está ótimo. Ao guardar na garagem ela quase destruiu o portão.
Então, não é muito fácil escapar de dualismos, quando a identidade desde sempre foi forjada.
Voce percebe, e eu percebo, isso já é um dualismo cruel. Do meu lado, os dois meus lados, em sentidos contrários, fazem o que podem para manter o preto no preto e branco no branco. Do seu lado, seus dois lados, totalmente preto e totalmente branco, tão bem distinguíveis e operantes.
Enquanto sou eternamente cinzas, voce é definido. Mas isso é uma banalidade, porque o importante é gostarmos das mesmas cores.
Se minhas sombras servem à poesia, por favor, nem me pergunte, se isso é realidade ou é imaginação, e não que eu não saiba responder, é que não quero responder.

Mais que um abraço:

[Havia cães ontem em Auschwitz, o silêncio do campo arrebentado pelo ladrar, neve fresca pisoteada pelas botas da polícia. A operação começou logo na primeira manhã, as unidades caninas empenhadas numa caça ao homem seguida em tempo real por todo o mundo. Ao amanhecer, desconhecidos removeram do topo do portão principal a estrutura metálica com a inscrição “Arbeit macht frei”, o trabalho torna livre”, mensagem de boas-vindas aos deportados para o campo de extermínio onde a palavra significava o seu contrário. Segundo a reconstrução da polícia, a inscrição com cinco metros de comprimento e pesando quarenta quilos foi levada entre as 3.30 e 5 horas da manhã de ontem]

Devir disse...

Dualismo Totalitário

Luciano, só para atiçar as meninas mais crescidas que revoltam mesmo antes das chuvas acabarem:

"PSDB e PT

Estes dois partidos, apesar de aparentarem uma “oposição”, na verdade falam a mesma língua e trocam farpas no mesmo ambiente cultural. São duplos miméticos, para usarmos um termo girardiano, em que um imita o outro conforme a rivalidade se intensifica, tornando-os indistingüiveis quando a propaganda os faz parecer diferentes. Formam a “social-democracia obscurantista” porque criaram o totalitarismo cultural e espiritual que vivemos nos nossos dias. Você pode até pensar que não está em um regime totalitário porque ainda (repito: ainda) não foi preso por uma Securitate ou uma KGB tupiniquim, mas pergunto-lhe: Já tentou falar de algo que escape do relativismo moral que abunda nas universidades e redações de jornais? Experimente falar de qualquer tema metafísico ou religioso; é batata que você será catalogado como “carola”. Defenda a hieraquia da realidade, em que a ordem das coisas se sobrepõe ao fanaticismo da igualdade – e veja como as pessoas não o convidarão mais para o cocktail bacana onde você poderia descolar um empreguinho trendy. Isso sim é totalitarismo – e o pior de todos pois é o totalitarismo consentido, fortalecido na pusilanimidade humana, na apatia da ação débil, que confunde caridade com coniviência criminosa. Se não matam o seu corpo, matam a sua alma.]

Mariana Abi Asli disse...

Nostalgias às vezes vem para nos alertar que a vida é uma linha de fluxos constantes, por oras sinuosas, quadriculadas, paralelas, linhas retas, tracejadas por um ponto, ponto chamado TEMPO.
Gosto de sentir saudades das coisas que fiz e que não voltam mais, das coisas que me arrempedi de ter feito, das coisas coisas que fiquei muito feliz de terem feito, das coisas que tive um medo absurdo infantil, dos meus tempos virgens, gosto de lembrar dos meus amores platônicos, das cartas anônimas que gostava de escrever, das minhas coleções de papeis de cartas, papeis de bala, das horas intermináveis que ficava na rua molecando com os garotos da antiga ladeira onde morava...
Gosto de me lembrar em como me sentia um "peixinho fora d'água" diante de todos a minha volta e que eu pertinente tentanva me mudar para ser considerada uma pessoa "normal" e "aceita"
Até um dia me pús a percebe que as coisas são como são, tem coisas que não voltam, não segue adiante e nem mudam... que há coisas que você mesma muda de concepção, que há coisas que são tão deliciosas e preciosas serem vividas que se fossem repetidas não seriam mais as mesmas,não teriam o mesmo gosto, pois uma Mariana de hoje não é a mesma de um minuto atrás, como a chuva que cai hoje não é a mesma de ontem
Mas tudo se torna delicioso, quando você sabe que o passado sempre existiu desde que o mundo é mundo, e persistir na sua "página" é burrice, e que o futuro é um campo aberto e desconhecido desafiante somente aos espíritos errantes do PRESENTE, daqueles que são apenas humano demasiado humano

bjs grandes
Mari
(gosto daqui)

Devir disse...

Hora do almoço, bati o cartão das coisas que nunca vão mudar, do escritório, dos pais, dos sapos que são felizes tão somente se conseguirem não desejarem ser príncipes, enfim, estou batendo cartão desta certeza que, quando se trata de realidade, nunca vai mudar, porque, queremos ou não, é absoluta.
E, tudo bem, rss, Mariana?
Quero comprar um livro, quem sabe no domingo, na livraria Cultura da av. Paulista, onze da manhã, estarei vestido de feio, velho, pobre, boné de lona com uma bandeirinha do Brasil do lado esquerdo costurada, torcendo para não chover.

Deus, como que eu não sabia o que voce fazia no inverno passado?

Beijos (gosto de voce)

Adriana Godoy disse...

Devir, ler também ninguém esquece. Seu texto está mais poético, menos amargo. Viajei um bocado e fui até a infância em que nunca consegui andar de bicicleta, pq meus irmãos me enchiam o saco. E ficar pensando, cismando era uma fuga que tinha. E sonhar mais ainda. Sempre a realidade e o sonho. Bonito. beijo.

Devir disse...

Uhm, acho que não posso mais cismar que voce sequer lê meus posts, rss
O meu encantamento com voce é isso tudo, menos a amargura!!!
Provocações são necessárias, porém é certo que provocar onças e javalis torna a vida insuficiente.
Mas, a culpa não é nossa, desde 67 que, em plena ditadura, criou-se o herói brasileiro "nato" Macunaíma, voce pode até queimar as unhas com massarico para considerá-lo, que ele, o porra do herói brasileiro, sequer vai se irritar.
E, nunca se tornam águas passadas.

Desde sempre, AGod, profundo abraço