domingo, 26 de julho de 2009

Misericórdia, pedir ou oferecer?


Respondo por mim: ambos, a todo instante, em todo lugar e para todo ser humano.


"Mas eis que me deixo levar a falar disso, do livre-arbítrio, que eu queria deixar de lado.
Digamos antes o seguinte.
Pode ser que haja duas maneiras de perdoar, conforme acreditemos ou não no livre-arbítrio do culpado: pura graça, como diria Jankélévitch, se o acreditarmos, ou conhecimento verdadeiro, como diria Spinoza, se não o acreditarmos.
Mas as duas coincidem no fato – que é a própria misericórdia – de que o ódio desaparece e de que a falta, sem ser esquecida nem justificada, é aceita pelo que é: um horror a combater, uma infelicidade a lamentar, uma realidade a suportar, um homem, enfim, a amar – se pudermos.
Os que leram meus livros precedentes sabem que, pessoalmente, nunca pude acreditar no livre-arbítrio, mas não cabe aqui eu me explicar.
Que me baste evocar a grande idéia de Spinoza, com a qual cada um fará o que quiser: os homens se detestam tanto mais quando se imaginam livres, e tanto menos quando se sabem necessários ou determinados.
É com isso que a razão se aplaca, com isso que o conhecimento é misericordioso.
“Julgar”, dizia Malraux, “é evidentemente não compreender, pois, se compreendêssemos, já não poderíamos julgar.”
Digamos antes que não poderíamos mais odiar, e é tudo o que a misericórdia pede – ou antes, tudo o que ela propõe.
É esse o sentido de uma das mais famosas fórmulas de Spinoza: “Não zombar, não chorar, não detestar, mas compreender.”
É a própria misericórdia, sem outra graça, aqui, senão a da verdade.

Ainda é um perdão?
Não exatamente, pois quando se compreende já não há verdadeiramente o que perdoar (o conhecimento, como o amor, torna o perdão a um só tempo necessário e supérfluo).
Desculpa? Não vou discutir por causa de palavras.
Tudo se desculpa, se quiserem, pois tudo tem suas causas.
Mas não basta sabê-lo: o perdão realiza essa idéia, que sem ele não passaria de uma abstração.
Não queremos mal à chuva que cai ou ao raio que fulmina, dizia eu, e por conseguinte nada temos a lhes perdoar.
O mesmo não vale para o mau, finalmente, e não é esse o verdadeiro milagre – que não é milagre – da misericórdia?
Que o perdão se abole no mesmo instante em que se dá?
Que o ódio se dissolve na verdade?
O homem não é um império num império: tudo é real, tudo é verdadeiro, o mal como o bem, e é por isso que não há nem bem nem mal fora do amor ou do ódio que introduzimos.
É nisso que a misericórdia de Deus, como diria Spinoza, é verdadeiramente infinita, porque ela é a própria verdade, que não julga.
Nessas regiões de que se aproximam os sábios, os místicos e os santos, ninguém pode habitar em permanência.

Mas a misericórdia tende a elas; mas a misericórdia leva a elas.
É o ponto de vista de Deus, se quisermos, no coração do homem: grande paz da verdade, grande doçura do amor e do perdão!
Mas o amor prevalece sobre o perdão, ou o perdão arrebata a si mesmo nesse dom do amor.
Perdoar é cessar de odiar, é portanto cessar também de poder perdoar: quando o perdão é consumado, quando é completo, quando não há nada mais além da verdade e do amor, não há mais ódio a fazer cessar, e o perdão se abole na misericórdia.
Por isso eu dizia no início que a misericórdia era menos a virtude do perdão do que sua verdade: ela o realiza, mas suprimindo seu objeto (não a falta: o ódio); ela o consuma, mas abolindo-o.
O sábio spinozista, em certo sentido, nada tem a perdoar: não porque não pode ser vítima de injustiça ou de agressão, mas porque nunca é conduzido pelo pensamento do mal nem enganado pela ilusão do livre-arbítrio.

Sua sabedoria nem por isso é menos misericordiosa, e é até mais: pois o ódio desaparece de todo, levando consigo toda e qualquer idéia de culpa absoluta (que seria responsabilidade não pelo ato, mas pelo ser), pois o próprio amor torna a ser possível.
É por isso que, em outro sentido, ele perdoa tudo.
Todos inocentes?
Todos amáveis?
Não, é claro, pela mesma razão!

Embora as obras das pessoas de bem e as dos maus façam igualmente parte da natureza e decorram de suas leis, explica Spinoza, nem por isso elas deixam de diferir “umas das outras, não apenas em grau, mas por sua essência: de fato, embora tanto um rato quanto um anjo, tanto a tristeza quanto a alegria dependam de Deus (isto é, da natureza), um rato não pode ser uma espécie de anjo, nem a tristeza uma espécie de alegria”.

A misericórdia não acarreta nem a abolição da falta, que permanece, nem as diferenças de valor, que ela supõe e manifesta, nem, é preciso lembrar, as necessidades do combate.


Mas suprimindo o ódio, ela dispensa que lhe busquemos justificativas.

Aplacando a cólera e o desejo de vingança, ela permite a justiça e, se necessário, o castigo sereno.

Enfim ela torna concebível que os maus, fazendo parte do real, também sejam oferecidos a nosso conhecimento, à nossa compreensão e – pelo menos é esse o horizonte que a misericórdia deixa entrever – a nosso amor.

Nem tudo se equivale, claro, mas tudo é verdadeiro, e o canalha tanto quanto o homem de bem.

Misericórdia para todos, paz para todos – e no próprio combate!"


FRAGMENTO DE TEXTO DO LIVRO:
Pequeno Tratado das Grandes Virtudes
De André Comte-Sponville
Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999
Tradução de Eduardo Brandão

5 comentários:

Anita Mendes disse...

"Não queremos mal à chuva que cai ou ao raio que fulmina, dizia eu, e por conseguinte nada temos a lhes perdoar"
devir,
quando li esse trecho fiquei um pouco chocada pq coincide um pouco com um poema que estou escrevendo (vou colocar no blog depois)

primeiro: a Misericórdia é o sentimento de culpa que nos vivemos. ela é o peso da bondade que nos foi concebida... uma contradição ao livre arbítrio. Não tivemos a opção de escolher -la , pois essa nos foi dada: uma imposição. O livre arbítrio do ser humano é o capeta(rs).
tudo que é abominável e carnal chama-se livre arbítrio. é o preço que pagamos para sermos subservientes ao controle de uma sociedade que usam essas " ordens" como terror psicológico.
estou no limbo , devir. Tenho esse temor à Deus, tenho esse temor de arrepender-me dos meus pecados( que não deveriam ser).... acho que não estou completamente livre dos meus pensamentos.
falo pra ti, tenho medo do homem do bem porque não acredito que seja da natureza humana ser bom . acredito na passividade estagnada dos que ainda nunca foram cutucados pela vara da realidade.
sou um ser selvagem ,sou um ser perverso que tenta fazer o bem como forma de equilibrio: acho que sou humana demais .
e Adão e Eva ficam pra outra , outra historia...(rs)

segundo: sugestão 7 arte:
quadros de Hieronymus Bosch.

e hoje sem terceiros...(rs)

beijos enormes pra ti, Anita.

Devir disse...

Tive tantos, e os tenho tantos ainda, uma esperança!, destes combates, contra a "natureza humana", que, confesso, temo, em uma eventual e mínima visita aos paraísos artificiais(Baldelare), não mais voltar, ficar por lá: onde difinitivamente e democraticamente ninguèm mais importa.
Anita, tenho certeza do que voce me disse, e jamais duvidei, e eis uma das caras do seu "capeta": certeza, conhecimento, sabedoria, quanto mais, mais incomoda os tementes; eles que o próprio ama.

Devir disse...

Errata; de tristeza: Baudelaire

"EMBRIAGUEM-SE

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se."

Luciano Fraga disse...

Amigo Devir,antes,muito feliz nossa amiga Anita.São "santos" aqueles que foram contemplados com um diploma para tal e aqueles que ainda não foram cutucados com o tição da fogueira.Fico tentando encontrar uma palavra que se encaixe ou que caminhe paralela ao perdão.Imagino se perdão ou perdoar seria uma forma de aceitação ou a aspiração e desenvolvimento das qualidades da indiferença?Talvez por não ser pleno?Por mais que contemple o perdão, sinto-o extremamente melindroso,não apenas quando envolve o outro, sobretudo quando não conseguimos nos perdoar.Dessa forma carregamos fardos e pendências que são impostos para amansamento de nossa natureza.Aqui meus neurônios esquentam, forte abraço.

Devir disse...

Oh Luciano, voce então precisa ler o livro do André Comte-Sponville. O perdão está a um pequeno passo para a misericórdia. Realmente, é difuso, pode-se perdoar tanto para salvaguardar sem culpas a indiferença, quanto para se manter operante um sentimento bom entre as pessoas.
Quanto a Anita, o pior é suportar as intervenções do desejo carnal, neste ambiente, onde realmente "é proibido proibir". Porém...

Grande abraço