domingo, 27 de setembro de 2009

America Latina, branca no eterno ensaio



As Ruínas Circulares
(Jorge Luis Borges
Ficções - Editora Globo
tradução Carlos Nejar
1982)

Compreendeu, com alguma amargura,
que não podia esperar nada daqueles alunos
que passivamente aceitavam sua doutrina e sim
daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição
razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição,
um pouco mais.

Uma tarde
(agora também as tardes eram tributárias do sonho,
agora velava apenas um par de horas no amanhecer)
licenciou para sempre o vasto colégio ilusório e ficou
com um só aluno.

Era um rapaz taciturno, citrino, indócil
às vezes, de feições afiladas repetindo as de seu sonhador.

A brusca eliminação de seus co-discípulos não o desconcertou
por muito tempo;
seu progresso, no fim de poucas lições
particulares, pôde maravilhar o mestre.
Não obstante, sobreveio
a catástrofe.

Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido.
Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiênico, correria mais riscos, viajaria mais.
Contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas,
nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente
cada minuto da sua vida: claro que tive momentos de alegria.
Mas se pudesse voltar a viver,
trataria de ter somente bons momentos.
Eu era um desses que nunca ia à parte alguma sem um termômetro,
uma bolsa de água quente e um pára-quedas:
se eu voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres
e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.
O homem, um dia, emergiu do sono como de um deserto
viscoso, olhou a luz vã da tarde que, à primeira vista, confundiu
com a aurora e compreendeu que não sonhara.

Toda essa noite
e todo o dia, contra ele se abateu a intolerável lucidez da insônia.

Quis explorar
a selva, extenuar-se;
somente alcançou entre a cicuta aragens de sonho débil,
listradas fugazmente de visões de tipo rudimentar: inaproveitáveis.

Quis congregar
o colégio e apenas havia articulado algumas breves palavras
de exortação, este se deformou, se apagou.

Na quase perpétua vigília,
lágrimas de ira queimavam-lhe os velhos olhos.

4 comentários:

Luciano Fraga disse...

Caro amigo Devir,a velha América Latina com seus "pés cansados e feridos" com vontade de voltar a viver os velhos pesadelos, com seus caudilhos que estavam meio adormecidos.Na próxima vida, faria um pouco diferente(só um pouco), não tenho muitos arrependimentos do que fiz(mesmo as merdas) e o que deixei de fazer na próxima acredito que outras pendências também também ficarão pelo caminho do aprendizado e no ciclo do eterno retorno, grande Borges, abraço.

Devir disse...

Com certeza, america latrina!!!

Mas, pensando bem, a culpa é minha, quando defendo raivosamente um ensino universal, para todos, rss, citando vários pensadores estrangeiros, e blá blá blá e blá.

Será que também já fiquei cego e não vejo que nós, americanos latinos, só não somos mais interessados por "cultura" por causa deste 'colonialismo' perene?

Será que não me engano quando, só encontro inimizades, ao investigar as novas mesmas velhas 'fórmulas' de exploração 'dos ingleses'?

Luciano, depois de tanto vento contra, deste tempo 'pós-moderno',
estou sentindo uma calmaria sinistra... Estou navio fantasma!

Mais tarde, ainda esta noite, vou
publicar pelo menos um, de vários posts premeditados...

ahre babas

Luciano Fraga disse...

Caroa amigo Devir, Olha aí, um belo título para um livro,"CALMARIA SINISTRA", há muito que vivo engasgado nos navios e nas cidades fantasmas, forte abraço.

Devir disse...

Rss, porque sabemos que nestas
é quase milagre
a tempestade passar de fora

Forte abraço